Hoje em dia existe um termo que anda bastante utilizado por aí: o chick lit.
A expressão se refere a uma literatura voltada especificamente para o público feminino (em tradução livre seria algo como: “literatura para mulherzinha”).
É de onde surgem histórias sobre mulheres querendo perder peso para arrumar namorado; procurando formas de controlar os cartões de créditos; fazendo fofocas em escolas de ricaços ou agarrando qualquer anjo ou morto-vivo que brilhe por aí.
Que seja; se elas gostam disso, nós temos de respeitar a forma de construção de raciocínio do sexo oposto.
A grande questão, porém, que fica é: ok, e se o mercado editorial anda invadido pelas obras para a mulherada, o que sobra nas prateleiras para representar a legítima literatura de macho?
Abaixe o volume do jogo no fundo aí e abra essa cerveja no dente, meu amigo.
Vamos falar de literatura para macho de verdade…
Bernard Cornwell, ou como se faz literatura pra macho…
Quando a mãe de Bernard Cornwell o pôs no mundo em uma Londres fria de 1944, ela não fazia a menor ideia do que estava fazendo ao mundo da literatura masculina. O pai talvez fizesse.
A mãe não.
O pai era um aviador canadense e a mãe auxiliar da Força Aérea Britânica. Na minha cabeça eu já imagino o genitor fazendo o parto da própria mulher no meio de uma trincheira barulhenta, dando uns tapas no traseiro do moleque e berrando com o indicador apontado: “e não chora não, garoto, que homem não chora, hein, p#$$%!”.
(Bernard Cornwell aos 02 anos, em fotos raras)
Mais tarde, o jovem Bernard foi adotado por uma família que pertencia a uma seita religiosa chamada Peculiar People, seja lá o que um negócio desses significar. Na verdade, dizem que significava uma seita fervorosa que rejeitava todo tipo de friviolidade, até mesmo a medicina.
Eu acredito.
Em minha mente consigo ver perfeitamente um pequeno Cornwell com o dedo deslocado após uma queda ruim no futebol, e uma monja tatuada e musculosa gritando na cara dele: “e coloca essa p#$$% de dedo no lugar sem chorar, que já falei que homem não chora, hein, p#$$%!”.
Com o passar do tempo, antes que criassem a Cientologia e o obrigassem a contar a sua quantidade de thetan, ele fugiu para a Universidade de Londres, trabalhou na BBC por 10 anos e depois tentou se casar com a americana Judy, mas os americanos o consideraram inglês demais para lhe dar um green card.
(você falaria mal de um livro desse cara na cara dele?)
Sem tal permissão, Cornwell resolveu viver como escritor, já que para esse trabalho não é preciso permissão do governo dos EUA, pois os americanos só reconhecem um escritor como um trabalhador de verdade quando ele ganha dinheiro com isso.
Ah, sim, hoje eles sabem muito bem que é Bernard Cornwell.
“Tough Lit”
Em inglês existe uma expressão para o cara machão, aquele de estilo valentão, herói brigão dos anos 80: ele é o chamado tough guy.
Partindo desse princípio, e na falta de uma expressão que represente todo o oposto da chick lit, eu passei a utilizar a expressão: tough lit para essa literatura anabolizada, que pode entediar a princípio o público feminino, mas levar o masculino ao êxtase primitivo de uma arquibancada de MMA.
(O tough guy não precisa brilhar no sol pra chamar a atenção…)
E quais as características de uma literatura desse tipo?
Vamos lá: o herói desse tipo de literatura não tem essa de modéstia ou conflitos psicológicos intensos. A coisa pra ele é bem mais simples: ele simplesmente sabe que ele é o Cara.
Veja bem, ele não acha que o cara; ele simplesmente sabe que é.
(Isso é “tough lit“)
Ele olha aqueles baderneiros fazendo arruaça na taberna e fica pensativo se vai fingir que está vendo ou não porque sabe que se resolver se levantar, ele não vai simplesmente lhes dar uma lição de moral.
Ele vai destruir a taberna inteira nessa lição!
Outra coisa: o herói de tough lit gosta de mulher. Ainda que do jeito tosco e bronco dele, ele gosta muito. Então nem adianta aparecer com aquele papo de ãh, o que?, não, não pode, só depois do casamento, ou se você me ama de verdade vamos pensar se devemos de fato ficar juntos, meu amor.
O tough guy se preciso pega a mulherada pelos cabelos e faz coisas com ela mais intensas do que vídeos caseiros da Paris Hilton.
Conan é togh lit. James Bond também. Jason Bourne nem se fala.
(esse não é um leitor de “tough lit”…)
Para identificar um protagonista de tough lit é fácil: basta usar a teoria citada por Alexandre “Jovem Nerd” Ottoni no comentário sobre a definição de um típico herói anos 80: é simples, o cara tem de resolver o problema sozinho!
[atualizado] Como bem observaram alguns leitores, o comentário acima sobre a definição do herói anos 80 não foi do Ottoni, mas de seu grande parceiro, o Azaghal. Obrigado pela correção, galera! [atualizado]
Veja bem: ele pode ir lá na frente e liderar um exército contra uma parede de escudos, na falta de alguém competente para fazer isso. Mas ele sabe que, se ele quisesse, ele ia lá e quebrava todo mundo sozinho (o que em algum momento ele vai acabar fazendo mesmo)!
(já esse é um leitor sendo formado desde cedo pelo pai…)
E bem, não é algo assim tão simples quanto parece a princípio, mas felizmente existem por aí alguns escritores que conseguem traduzir esse estilo testosterona de escrever de maneira primorosa.
Cornwell é um dos melhores deles.
Estilo
Bernard Cornwell escreve romances baseados em fatos históricos, buscando nos fatos retratados uma autenticidade realista para a própria narrativa. Sua retratação histórica costuma ser tão bem feita, que mesmo que as coisas tenham sido diferentes do que ele conta, você irá preferir acreditar na versão dele mesmo assim.
Cornwell tem um estilo sujo, direto, intenso. Sua lista de personagens costuma ser tão imensa, e os nomes tão complicados, que não estranhe se você se perder e precisar apelar constantemente para os breves resumos sobre quem é quem no início.
E não comece a reclamar, por favor; a primeira lição de uma tough lit de verdade é que leitor de autores como Cornwell não chora!
O que impressiona no estilo do inglês é como ele é detalhista, mas não é prolixo. Suas descrições de batalhas e paredes de escudos são extremamente ricas e ao mesmo tempo dinâmicas. Você consegue escutar as flechas zunindo de um ponto a outro. O som do metal se chocando. Os gritos das pessoas morrendo. Os cascos dos cavalos estremecendo a terra.
(um cenário depois dos personagens de Cornwell passarem por ele…)
Além disso, a realidade medieval é retratada como era de fato, sem romanciação. Ela é feia, grotesca, por muitas vezes bizarra. Os soldados não entram no campo de batalha com armaduras limpas; eles entram suados, bêbados, fedendo; e quando o inimigo começa a se aproximar, muitos deles começam a urinar e defecar nas próprias calças, buscando força na loucura ou na embriaguez para reagir.
Os personagens gostam de sangue e de ver a cor do sangue do inimigo. E de arrancar coisas dos corpos dos mortos para usar de troféu. E de tomar suas mulheres como escravas ou amantes forçadas. E de outras coisas que você vai gostar de ler, mas nem sempre de imaginar…
Existe uma certa diplomacia e intriga política no universo de Cornwell, mas no fim das contas, tudo se decide mesmo é na porrada.
É por isso que Cornwell pode ser chamado de uma “literatura pra macho”. No fim, ler seus livros é meio como assistir a um “Os Mercenários” medieval; traz à tona aqueles instintos primitivos que o sexo masculino, independente da época, resgata quando cospe no chão, se estoura todo erguendo um supino, abraça um amigo estalando tapas nas costas e mastiga de boca aberta ao falar das últimas conquistas femininas com as pernas afastadas na mesa do bar.
Há tanta testosterona desfilando por aquelas páginas, que se você bater algumas delas no liquidificador pode sair dali direto para uma orgia.
(1ª sugestão de um capista para a capa de O Rei do Inverno)
Entretanto, nem todos as suas séries possuem o mesmo nível. É bom ter isso em mente para não começar pelas leituras menos ideais.
Logo, siga o mesmo raciocínio de caso você quisesse apresentar Sylvester Stallone para um adolescente da geração de hoje: você não iria mandá-lo assistir ao “O Especialista”, “Daylight”; nem mesmo “Rambo”, não é? (De novo: não é?)
Você iria mandá-lo começar por “Rocky Balboa”!
O raciocínio aqui é o mesmo. É o seguinte: quer ler Cornwell? Comece por As Crônicas de Artur. Ponto.
Não comece pelo O Arqueiro nem Azincourt, e muito menos Stonehenge.
Comece de uma vez pela obra-prima.
Se não vier a ler mais nada do inglês depois, sem problemas. Você já terá lido um dos melhores exemplares de tough lit que temos por aqui.
Boas vindas ao Rei que não Queria Ser Rei, mas era assim mesmo
Quando me perguntaram em uma entrevista qual era meu personagem preferido na literatura, a resposta foi imediata: Derfel Cadarn.
É este o personagem narrador de As Crônicas de Artur e também o maior acerto de Cornwell nessa obra. Narrar a aventura de um ponto de vista de um personagem inicialmente menor aos acontecimentos faz com que de fato tenhamos uma identificação imediata com o personagem, como se fosse ele um ancestral de família.
(salve o Rei…)
É fácil amar Derfel. Nós acompanhamos seu treinamento, seu primeiro inimigo morto, seu primeiro encontro com o mito Artur, seu primeiro amor, seu segundo amor, sua humildade perante um Merlin mal-humorado, ranzina e extremamente debochado.
Ao longo dos três livros, nós acompanhamos o inicialmente tímido adolescente se tornar o futuro lorde guerreiro experiente.
O cenário ao redor de Derfel é traiçoeiro, violento depressivo, entretanto ele se mostra uma pessoa com noções de honra, caráter e fidelidade aos ideais e às pessoas a quem jura sua lealdade. Ele é o total oposto de Uhtred, o personagem das Crônicas Saxônicas, que é outro tipo de tough guy, mais no estilo Conan de ser, e tão fascinante quanto.
Outra curiosidade da série é a forma como o autor trata a magia.
Aqui a magia nunca é magia “de fato”. Os feiticeiros fazem paredes com crânios na frente de exércitos e dançam e amaldiçoam o inimigo. Ainda assim, a magia de fato é ativada exclusivamente pela superstição popular. E isso é muito interessante porque levanta a dúvida: mas se a “magia” funcionou, independente do artifício, ela é superstição ou de fato é a própria definição de magia?
Exibições de poder pirotécnicos se mostram engenhosas formas de ludibriação em cima desse mistiscismo e tudo é construído de uma forma tão bem-feita, que taxar tal existência da magia na série como um fato ou um truque também depende da superstição pessoal de cada leitor.
A forma como Cornwell também nos reapresenta os personagens de Camelot é fabulosa e surpreendente.
A maioria de nós sempre admirou Lancelot e tratou Artur como um Rei a ser respeitado, embora distante e de quem se sente uma certa pena ao se tornar provalmente o corno mais famoso da literatura mundial.
Depois de As Crônicas de Artur não.
Depois dessa saga, todos, mas literalmente todos os personagens de Camelot são visto sob uma nova ótica; uma ótica masculina barra pesada, e sem brumas.
Arrumando Problemas
Você quer procurar um ou outro problema nos livros de Cornwell?
Ok, as explicações históricas às vezes podem lhe cansar.
O excesso de personagens vai confundir.
Alguns personagens, como o Arqueiro, são overpowers e costumam não apenas ser muito superiores às pessoas comuns, como estar no lugar certo na hora certa, ou errada, mas que para a trama não deixa de ser a certa.
E talvez por isso, por saberem o quanto são melhores do que os outros, alguns deles são o que na gíria se chamaria de escrotos. Mas o termo aqui não seria no sentido de serem personagens ruins, mas simplesmente de serem arrogantes e antipáticos na relação com os outros personagens, correndo o risco de gerar uma falta de apego frente a um determinado leitor.
E se você teve algum desses problemas com a obra, tem o direito como leitor.
Mas se você é um tough guy, guarde essas coisas para você, suporte a dor e não reclame. Nunca reclame.
Leitor de Cornwell não chora.
(imagem de um adepto da filosofia emo lendo sobre Cornwell)
E Além?
E para fechar, a pergunta: e além de Cornwell, que outros grandes representantes da legítima tough lit teríamos por aí?
Em minha mente alguns nomes estrangeiros surgem imediatamente: Robert Howard, Conn Iggulden, George R.R. Martin e Tom Clancy.
No Brasil, Leonel Caldela com seus romances de batalhas sujas e personagens pouco confiáveis supre bem essa função, tanto que eu e Eduardo Spohr gostamos de nos referir a ele como “o Cornwell brasileiro”.
E por voltar a falar no inglês, não poderia finalizar sem lembrar que Corwell é tão tough guy, que em junho de 2006 recebeu o título de Oficial na Ordem do Império Britânico, nos 80 anos da rainha. A conclusão que podemos chegar a tudo isso é que o universo realmente prepara um homem para sua missão no mundo.
Não foi à toa que aquele futuro escritor nasceu filho de militares, na fria e depressiva Londres de 1944.
É claro; isso tinha de fazer sentido.
Até para nascer; Cornwell tinha de nascer na guerra.
ps: e se alguém lembrar de alguma outra grande “tough lit”, aproveite e deixe registrado nos comentários.
Sedentário & Hiperativo